Por que precisamos rever nossa história para combater o racismo ambiental?

Tatiane Matheus, Anansi Lab

No início de 2024, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, se envolveu em uma polêmica porque disse que as mortes de dezenas de pessoas no Rio de Janeiro em consequência de fortes chuvas pela emergência climática eram frutos dos efeitos do racismo ambiental e climático. Para muitos brasileiros, o termo era novidade. Para outros, com perfil mais conservador, a crítica à ministra foi por  “fazer lacração”. Mas até mesmo para alguns progressistas, os temas gênero e raça são vistos como “pautas identitárias”. Esses usam o argumento de que bastaria resolver os problemas relativos à classe social. Mas será que se a pobreza acabasse, os demais desafios sumiriam num passe de mágica? Soa ingênuo ou mal-intencionado pensar assim.

“Um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”, já avisava o filósofo e político irlandês Edmund Burke, ainda no século XVIII. O fato é que, para enxergar e entender o racismo ambiental e climático brasileiro, é preciso dar alguns passos para trás e buscar ver o contexto da nossa sociedade sob o ponto de vista histórico, político, econômico, cultural e social — sobretudo, os nossos valores estruturantes.

As instituições e a sociedade brasileira ainda refletem o seu passado colonial e escravocrata em pleno século XXI. Do mesmo modo que, hoje, intelectuais, políticos e a sociedade civil debatem como querem o mundo para as próximas gerações, no passado, outros fizeram o mesmo.

Não era apenas a literatura e a moda europeia que muitos brasileiros imitavam do “velho continente”.  Não é por acaso que, ao pensar os caminhos para  um país moderno e desenvolvido, alguns intelectuais da época da velha República acreditavam que a fonte do atraso era a quantidade de pessoas não-brancas (leia-se negros e indígenas).

Em 1888, ano em que foi assinada a Abolição da Escravatura, alguns intelectuais brasileiros se inspiravam em teorias de que determinadas etnias eram superiores a outras. O racismo científico foi bem aceito desde o século XVII até a Segunda Guerra Mundial (o qual começou a ser questionado após a sociedade mundial ficar horrorizada com Holocausto).

O estado brasileiro também refletia esse ideal de branqueamento da população. Um exemplo é o artigo primeiro do Decreto nº 528,  de 1890, que dizia:  “ é livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas.”

A ideia do Estado brasileiro era que a mão-de-obra de pessoas escravizadas fosse rapidamente substituída por imigrantes brancos europeus — que foram viver nas regiões Sul e Sudeste do país. Já o Nordeste (com a maioria negra e sinônimo da era colonial) era visto como um lugar de atraso, seja no final do Império, seja na recém-nascida República. Será que essa semente de pensamento não está mesmo germinada na nossa sociedade com uma planta robusta e cheia de raízes?

Sabe-se que a miscigenação “concedida”  (com aspas e muita ironia) ou não pelas mulheres foi a gênesis do país. De acordo com a pesquisa de genoma divulgada em 2020 realizada no país, o projeto Mapa do DNA do Brasil, 70% das mães que deram origem à população brasileira são africanas e indígenas, e 75% dos pais são europeus. O genocídio indígena, sobretudo o extermínio de homens, é comprovado pela sua representação de apenas 0,5% do genoma na população. Não era apenas por doenças e maus tratos que muitos africanos não chegavam ao Brasil dos navios negreiros. Muitos se suicidavam diante do horror que vivenciaram.

Ainda nos primeiros anos de nossa jovem República, intelectuais começaram a fomentar a ideia que a mestiçagem iria melhorar, de alguma forma, a descendência étnica dos brasileiros e que iria “clarear a população brasileira em três gerações”. A pintura que traz a expiação da “maldição de Cam” é, literalmente, o retrato desse ideal onde há uma avó negra de pele retinta, uma mãe negra de pele parda e um pai branco felizes com seu bebê loiro.

Além do racismo científico da época, a escravidão também era explicada pela interpretação tendenciosa da Bíblia. Cam, filho de Noel, seria a explicação para a escravização de pessoas negras. Afinal, quem mandou ele expor a nudez de seu pai embriagado Noel (sim, aquele da Arca). O patriarca, quando acordou, amaldiçoou Canaã, filho de Cam, a ser “servo dos servos”. Ora, povos de pele escura devem ser os filhos de Cam, logo, estavam destinados à escravidão. Parece absurdo, mas há quem acredite nisso até hoje.

Um século antes de Caetano Veloso cantar que o “Haiti é aqui” em 1995,  o crítico literário, promotor, juiz e deputado sergipano Silvio Romero declarava, em 1881, que o “O Brasil não é, nem deve ser, o Haiti” e defendia que seriam necessários, “de um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e, de outro, a imigração europeia”.

Segundo o médico e antropólogo Nina Rodrigues, o Quilombo dos Palmares, no interior da então capitania de Pernambuco (hoje estado de Alagoas), teria sido, no século XVII, “a maior das ameaças à civilização do futuro povo brasileiro”, uma vez que, se bem-sucedido, transformaria o Brasil em um “novo Haiti refratário ao progresso e inacessível à civilização”.

Mas, o que isso tem a ver com o nosso racismo ambiental à brasileira? Os números que mostram onde estão os mais afetados pela emergência climática no Brasil coincidem com a base demográfica que foi estabelecida no século XX daqueles estados que não tiveram uma grande massa de imigrantes europeus. As regiões periféricas da maioria das grandes cidades trazem pessoas negras e/ou não-brancas entre seus moradores. À medida que esses municípios iam se desenvolvendo, essas pessoas eram “empurradas” pelas escolhas de quem fazia o planejamento dessas cidades, que tinham o poder de escolher quais são os cidadãos “desejáveis” e quais “mereciam” ser excluídos.

O racismo ambiental é o termo que explica o motivo de determinados grupos étnicos (como negros, indígenas, comunidades ribeirinhas, enfim, povos não-brancos) serem os mais vulnerabilizados em casos de enchentes, deslizamentos, rompimentos de barragens,  empreendimentos de energia, contaminação e desmatamento ou qualquer outra intempérie.

A expressão foi nomeada por um reverendo, químico e líder do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, Benjamin Chavis Junior, a partir da luta contra uma fábrica despejar  resíduos tóxicos de policlorobifenilos (PCB)  em um bairro de pessoas negras do condado de Warren County, Carolina do Norte. Em 1982, 60% da população de 16 mil habitantes desta cidade era, em sua maioria, afro-americana e vivia no limite ou abaixo da linha da pobreza.

É claro que o racismo ambiental não começou apenas nos anos 1980 nos EUA, quando o problema foi nomeado. O engenheiro ambiental e filósofo político martinicano Malcom Ferdinand é categórico ao relacionar a destruição do meio ambiente ao legado colonial racista. É este o ponto de reflexão. Não se deve dissociar uma coisa da outra. De acordo com Ferdinand, a solução para a crise climática está na solução das causas que determinaram o racismo na nossa sociedade. Precisamos resgatar a nossa história e trazer novas narrativas que trazem os pontos de vista daqueles que foram silenciados.

É urgente resgatar a nossa história também para compreender que temos peculiaridades distintas dos Estados Unidos, por exemplo. Enquanto casais de etnias diferentes estavam fora da lei na cultura norte-americana, aqui eram estimulados para atingir a “redenção de Cam”. Porém, algumas leis tupiniquins ajudavam a colocar os “cidadãos não desejáveis” no seus lugares. O mal dessa história é que muitos se iludiram e acreditaram na narrativa de que não há a necessidade de existir lutas específicas para uma etnia ou para outra.

O racismo ambiental brasileiro é se traduz na  falta de reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas, nos conflitos relacionados às obras de infraestrutura pelo país, na grilagem de terra, na gentrificação de bairros dentro das cidades, levando moradores  à diáspora urbana. Segue na falta de infraestrutura nas periferias das cidades e na falta de saneamento básico, que faz com que as pessoas sofram com enchentes cada vez mais intensas pelo aquecimento global. Trocando em miúdos, essas pessoas são vítimas do racismo ambiental e climático, que são primos-irmãos do racismo estrutural e institucional.

O racismo ambiental também pode ser observado na análise dos conflitos por território que ocorrem no país. A disputa relacionada à expansão em busca de recursos naturais e terra, caso do agronegócio, da mineração e do desenvolvimento de projetos como hidrelétricas, ferrovias, hidrovias, portos e rodovias, tem o racismo ambiental embutido nas suas entranhas, como apontam os estudos da pesquisadora Tania Pacheco no Mapa de Conflitos da FioCruz. Essas disputas ainda são refletidas nas reivindicações daqueles que atuam nos movimentos por justiça e contra o racismo ambiental no país, por parte de populações e entidades ligadas aos povos e comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas, extrativistas e pescadores artesanais, além de movimentos ligados à reforma agrária e à agroecologia.

Sim, é óbvio que precisamos resolver o problema com ações de políticas públicas, formação de salvaguardas, mitigação e adaptação climática.  A lista é longa. São válidos e urgentes projetos e ações que fomentem a justiça climática na prática. Entretanto, nada disso exclui a importância de teorizar e debater os tentáculos dos racismos. É por isso que a fala da ministra incomodou tanta gente. Afinal, é incômodo se dar conta que não é por culpa da chuva que algumas pessoas morrem. É difícil perceber que muitos  de seus antepassados foram algozes e que a sua própria inércia ajudou na manutenção dessa realidade. Faz-se urgente revermos a nossa história para que possamos “curar” o que está “recalcado”, para assim mudar a realidade.

Foto: Fernando Frazão – Agência Brasil

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